quinta-feira, 11 de março de 2010

GÊNERO, PODER E EMPODERAMENTO DAS MULHERES (1)

          Os problemas ligados a questões de poder têm sido um dos principais entraves aos projetos de desenvolvimento. Mas ao contrário do que os apressados possam imaginar, estes problemas não se referem exclusivamente a hierarquia funcional ou as esferas de decisão. Eles fazem parte do cotidiano do trabalho, nas relações entre os técnicos, entre técnicos e a comunidade, dentro da própria comunidade. Apesar de se manifestarem mais explicitamente na aplicabilidade das ações específicas do enfoque de gênero, eles estão presentes em todos os componentes desses projetos.

          Entender a questão do poder e em especial do poder nas relações de gênero, bem como sua importância no processo de incorporação das mulheres é fundamental na prática daqueles que são responsáveis pela execução de projetos de desenvolvimento social.

          Neste texto, nos propomos a discutir as questões básicas do poder, da relação entre gênero e poder e do empoderamento das mulheres e seus reflexos nos projetos de desenvolvimento.

O Poder

           Julieta Kirkwood(2) ao discutir os nós do poder afirma:


“... o poder não é, o poder se exerce. E se exerce em atos, em linguagem. Não é uma essência. Ninguém pode tomar o poder e guardá-lo em uma caixa forte. Conservar o poder não é mantê-lo escondido, nem preservá-lo de elementos estranhos, é exercê-lo continuamente, é transformá-lo em atos repetidos ou simultâneos de fazer, e de fazer com que outros façam ou pensem. Tomar-se o poder é tomar-se a idéia e o ato”.

                              Marcela Lagarde(3) vai mais adiante ao definir o poder como :

“... a capacidade de decidir sobre a própria vida; como tal, é um fato que transcende o indivíduo e se plasma nos sujeitos e nos espaços sociais; aí se materializa como afirmação, como satisfação de objetivos (...). Mas o poder consiste também na capacidade de decidir sobre a vida do outro, na intervenção com fatos que obrigam, circunscrevem ou impedem. Quem exerce o poder se arroga o direito ao castigo e a postergar bens materiais e simbólicos. Dessa posição domina, julga, sentencia e perdoa. Ao fazê-lo, acumula e reproduz o poder”.


          Como podemos ver, estes conceitos de poder vão além do poder político, do poder formal presente no âmbito do Estado, do poder resultante das hierarquias funcionais. Na verdade, o poder opera em todos os níveis da sociedade, desde as relações interpessoais até o nível estatal. As instituições e estruturas do Estado são elementos dentro de certas esferas de poder, cujas concepções se fundem na complexa rede de relações de força. Nesse sentido, o poder pode ser visto como um aspecto inerente a todas as relações econômicas, sociais e pessoais. Pode-se afirmar que o poder está presente do leito conjugal de um casal a sala presidencial do Palácio do Planalto. Estas relações de poder que operam em distintos níveis estão em constante conflito de interesses.

           As relações de poder se mantém porque os vários atores – tanto os dominadores como os dominados – “aceitam” as versões da realidade social que negam a existência de desigualdades, que afirmam ser estas desigualdades resultantes de desgraça pessoal ou da injustiça social (4). Esta aceitação é construída através dos mecanismos de socialização, da força da ideologia, das crenças religiosas, etc..

          Mas, voltando às citações de Kirkwood e Lagarde, se analisarmos detidamente estes dois conceitos de poder, e afastarmo-nos desse campo abstrato tentando pensá-lo enquanto personificação humana, certamente o veremos como uma prática tipicamente masculina, afinal, historicamente as mulheres têm estado do outro lado do poder, do lado da subalternidade.

Gênero e Poder

          Ainda hoje, pese todas as transformações ocorridas na condição feminina, muitas mulheres não podem decidir sobre suas vidas, não se constituem enquanto sujeitos, não exercem o poder e principalmente, não acumulam este poder, mas o reproduzem, não para elas mesmas, mas para aqueles que de fato controlam o poder. As pequenas parcelas de poder ou os pequenos poderes que lhes tocam e que lhes permitem romper, em alguns momentos ou circunstâncias, a supremacia masculina, são poderes tremendamente desiguais (5).

          Como já vimos em muitas outras oportunidades, esta subalternidade, determinante na condição feminina, é fruto do seu papel de gênero. Sabemos que a sociedade através de suas instituições (aparelhos ideológicos), da cultura, das crenças e tradições, do sistema educacional, das leis civis, da divisão sexual e social do trabalho, constroem mulheres e homens como sujeitos bipolares, opostos e assimétricos: masculino e feminino envolvidos em uma relação de domínio e subjugação.

"Quando falamos relações de Gênero, estamos falando de poder. Na medida em que as relações existentes entre masculino e feminino são relações desiguais, assimétricas; mantém a mulher subjugada ao homem e ao domínio patriarcal."

"Patriarcado é organização sexual hierárquica da sociedade tão necessária ao domínio político. Alimenta-se do domínio masculino na estrutura familiar (esfera privada) e na lógica organizacional das instituições políticas (esfera pública) construída a partir de um modelo masculino de dominação (arquétipo viril)."

          Isso significa dizer que o domínio patriarcal (masculino) apresenta na sociedade distintas manifestações. Ele esta presente no cotidiano do mundo doméstico e do mundo público. Não é preciso praticar a discriminação aberta contra a mulher ou a violência explícita para demonstrar sua presença na medida em que esse poder de gênero está assegurado através dos privilégios masculinos e das desigualdades entre homens e mulheres.

          Apesar das diferenças de classe, de raça e cultura, alguns aspectos derivados da condição de subordinação são comuns a todas as mulheres:



               • O controle masculino do trabalho das mulheres;



               • O acesso restrito das mulheres aos recursos econômicos e sociais e ao poder político, cujo resultado é uma distribuição muito desigual dos recursos entre os sexos;



               • A violência masculina e o controle da sexualidade.



          Durante mais de um século, o movimento de mulheres articulou-se em torno do enfoque da igualdade sem se dar conta que o próprio conceito de igualdade existia a partir de um modelo masculino e patriarcal de organização política. Somente após a conquista dos chamados direitos civis a partir dos anos 30, onde a tão propalada igualdade foi finalmente conquistada, é que as mulheres puderam se dar conta de que não era suficiente a conquista legal, seria necessário um processo de transformação mais amplo, onde o próprio conceito de igualdade fosse questionado (6). Essa será a tônica do movimento de mulheres dos anos 80.



          Esse processo de descoberta foi vivenciado também nos projetos de desenvolvimento que durante muito tempo buscaram a melhoria da condição feminina através dos enfoques de bem-estar social, de combate a pobreza e de geração de renda.



          Esses projetos, por não fazerem uma distinção entre “condição” e “posição” das mulheres (7), não conseguiram trazer mudanças significativas na vida da população feminina. Na verdade, muitos deles conseguiram ampliar a renda familiar, garantir o acesso das mulheres à saúde, a educação etc., mas não proporcionaram mudanças significativas na posição das mulheres. Estas continuaram subjugadas, excluídas de qualquer esfera de decisão e autonomia.




Condição é o estado material no qual se encontram as mulheres: sua pobreza, salário baixo, desnutrição, falta de acesso a saúde pública e a tecnologia moderna, educação e capacitação, sua excessiva carga de trabalho, etc.



Posição é o status econômico, social e político das mulheres comparado com o dos homens, isto é, a forma como as mulheres tem acesso aos recursos e o poder comparado aos homens.



          Este erro permaneceu durante muito tempo dominando os projetos de desenvolvimento. A falsa preocupação com a preservação da chamada cultura popular (mesmo que ela seja opressora e violenta), o medo de proporcionar mudanças qualitativas na divisão sexual do trabalho e na estrutura familiar pondo em risco o poderio masculino, serviu apenas para manter o domínio patriarcal intacto.



          Outro tipo comum de prática entre os planejadores e executores que têm mantido as mulheres afastadas dos benefícios desse tipo de projeto, é a concepção de que as necessidades das mulheres são idênticas às dos homens ou a de agrupações mais amplas como trabalhadores rurais, liderança local, etc, Geralmente, as mulheres são vistas e tratadas apenas como provedoras do bem-estar da família ou como meio de bem-estar de outros, como mães e esposas, nunca como sujeitos autônomos com demandas próprias.



          Como conseqüência, estes projetos resultaram ser ineficazes e até mesmo contraproducentes, na medida em que planejadores e executores não haviam entendido as desigualdades de gênero e portanto implementavam ações que só aumentavam a carga de trabalho das mulheres sem o correspondente em termos de benefícios, aumentando assim a brecha de gênero, isto é, o fosso existente entre os direitos do homem e os direitos a mulher.



          Superar as desigualdades de gênero é um dos primeiros passos para o desenvolvimento da mulher.



          A partir dos anos 80, as feministas começaram a questionar as estratégias de desenvolvimento e as intervenções destes projetos que não atacavam os fatores estruturais que perpetuam a opressão e exploração das mulheres, em especial das mulheres pobres. Nesse contexto é que o movimento de mulheres passa a utilizar o conceito de empoderamento.

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(1) Texto elaborado por Ana Alice Costa, Doutora em Sociologia Política pela Universidad Nacional Autonoma de México, Professora Adjunta IV do Departamento de Ciência Política da UFBa. e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA, e Pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – NEIM/UFBA. Coordenadora Executiva da REDOR.

(2) Kirkwood, Julieta. Ser política en Chile: las feministas y los partidos políticos. Santiago: Flacso. Março,1986.

(3) Lagarde, Marcela. Cautiverios de las mujeres: madresposas, monjas, putas, presas y locas. México: UNAM, 1993. P.154

(4) Kabeer, Naila. Empoderamiento desde abajo: Qué podemos aprender de las organizaciones de Base?. In. Leon, Magdalena (org) Poder y empoderamiento de las mujeres. Bogotá: MT Editores, 1997

(5) Costa, Ana Alice. As donas no poder. Mulher e política na Bahia. Salvador: NEIM/Ufba e Assembléia Legislativa da Bahia. 1998 (Coleção Bahianas, vol.2)

(6) “No particular, o movimento feminista tem procurado demonstrar que a mudança nas leis por si só não é suficiente para promover uma mudança nos comportamentos, nas mentalidades e na estrutura social. É que mesmo com a conquista do sufrágio, as mulheres permaneceram subjugadas à estrutura patriarcal da sociedade A conquista da igualdade jurídica, que por várias décadas foi meta do movimento feminista, não tem conseguido incorporar as mulheres nesse modelo de cidadania dominante. Cada vez mais avança a consciência da necessidade do estabelecimento de políticas públicas que possam estimular e mesmo garantir uma maior integração feminina, à estrutura de poder, ao mundo da política formal.” Costa. Ana Alice. Em busca de uma cidadania plena. In. Álvares, Ma. Luzia e Santos, Ma. Eunice. Olhares & diversidade: os estudos sobre gênero no Norte e Nordeste. Belém: GEPEM/REDOR. 1999.

(7) Os conceitos de condição e posição femininas na ótica desenvolvimentista foram desenvolvidos por Yong, Kate. El potencial transformador en las necesidades práticas: empoderamiento colectivo y el proceso de planificación. In. Leon, Magdalena. Op.cit.

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Trechos retirados da pesquisa original



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